segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Sem respirar

Se ao menos eu não desse por nada....


Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,

Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve lhe o sangue
de afogueada;
saltam lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu a deitada;
serviu se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá lhe a mamada;
veste se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueija
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

("Calçada de Carriche" de António Gedeão / Imagem: Egon Shiele)

10 comentários:

milhafre disse...

um belo poema sobre a realidade dura de todos os dias

hoje eu e tu estamos para o mesmo... deve ser porque como nunca mais chove vamos chovendo nós...

quero, preciso de ir acampar para o kilimanjaro e ficar cercado pela neve um mês,
com provisões claro...
quem me dera ser urso...
queria poder hibernar
civilização e correria ... :-(
melhores dias virão

Anónimo disse...

está nas vossas mãos a chegada desses novos dias... já que eu pouco posso fazer...
Mas, e por que se enquadra, já que é da mesma época, em que o Gedeão escreveu este poderoso poema, deixovos Sophia evocando Catarina Eufémia:

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta:fazer frente.

Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro.

Porque eras mulher e não somente a Fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste
E a busca da justiça continua.


Um beijo para ela, um "pontapé" nas canelas para ti, Pedro...

"tio" S com admiração por ambos

Elvira Carvalho disse...

Um poema que retrata a vida de muitas Luísas por esse país fora. Sabe que escrevi um conto intitulado Celeste, inspirado neste poema?
Um abraço e uma boa semana.

eco disse...

Também tenho uma citação...
esta é de um senhor inglês chamado Douglas Adams que, não procurando o sentido da vida, o encontrou, algures entre os Monty Python e o Nietszche. Deixou por aí uns livros escritos que nos fazem ter vontade de contornar as dificuldades da vida com o mesmo humor acutilante com que ele os escreveu.

Diz ele:

Bypasses are devices that allow some people to dash from point A to point B very fast while other people dash from point B to point A very fast. People living at point C, being a point directly in between, are often given to wonder what's so great about point A that so many people from point B are so keen to get there and what's so great about point B that so many people from point A are so keen to get there. They often wish that people would just once and for all work out where the hell they wanted to be.

Pára. Respira. Há sempre tempo para ambos.

Beijo.

Albertina disse...

É isso... este último conselho é que vale: Pára. Respira. Há sempre tempo para ambos...

Quantas calçadas tenho subido na vida carregada de sacos, de um emprego para outro, com crianças ao colo, a chorar, a rir, a arrastar as pernas de tantas dores, aos saltinhos por ir ao encontro de quem amo...?
Quantas calçadas subi cansada para que as tuas calçadas sejam menos íngremes...?

E quantas vais ter tu que subir, filha, qua ainda tens tanta vida à frente?

Conselho de velha: vai devagarinho... custa menos!

Beijos, meu Doce

Lisa disse...

Olá Ana,

Não conhecia este poema, que tão bem retrata a realidade de muitas mulheres.
Cabe-nos a nós, inverter esta realidade, para que as calçadas da vida não sejam tão árduas para as mulheres.

Muitos beijinhos docinhos para ti.

Lisa

Elvira Carvalho disse...

Se não desse por nada estava morta. Fisica ou moralmente morta o que às vezes até é pior.Olhe à sua volta. Você é uma princesa. A princesa do reino que é a sua vida. E uma princesa tem obrigagações para com o seu reino. Tem que fazer dele um lugar agradável, onde não haja lugar para as Luísas do povo. O tapete pode ser de flores. Mas o caminhante continua calçado. Porque por baixo das pétalas podem estar pedra ponteagudas.
A vida não é fácil para ninguém. Se você subir a calçada concentrada apenas na subida, ela parece não acabar nunca. Cansa. Se você a subir, olhando à sua volta, vendo as flores, dos jardins, as janelas floridas ou não dos prédios, os carros, os próprios transeuntes, você chega lá acima mais depressa e mais descansada.
Lembre-se do poeta.

"Caminante no hay camino. Se hace camino a la andar. A la andar,se hace camino, e ao volver la vista atraz, se vê la senda que nunca se há-de voelver a pisar"

Um bom dia com muita luz para a sua vida.
Um abraço.

P. S. ainda tem jarras vazias?

SQMA disse...

Que belo poema, e que retrato tão perfeito da realidade de muitas mulheres.
A calçada da vida é feita por diversos tipos de pedras, se pisar uma mais pequena facilmente alcançamos a seguinte, se pisarmos uma maior, o caminho até à seguinte é mais árduo, mas se a nossa vontade for de lá chegar, conseguimos sempre ultrapassar os obstáculos.

Fica bem.
Um beijinho

Branca disse...

Olá, querida Ana,

Este é um poema que sempre gostei de ouvir declamado com muito sentimento por Odete Santos e por outras vozes do teatro.
O facto de o ver aqui publicado por ti disse-me logo que tu já estás a ver a vida como a Elvira ta propõe, olhando á volta e isso é tão bom, é bom para ti e para os outros.
Deixo-te mil beijinhos.
Branca

Elvira Carvalho disse...

Hoje, contaram-me uma história que eu não conhecia. Pensei em si e vim contar-lha.

Borboletas

Um homem achou o casulo de uma borboleta. E, no dia em que apareceu uma pequena abertura no casulo, ele sentou e observou a borboleta, por diversas horas, enquanto ela se esforçava em forçar seu corpo através daquele pequeno furo. Depois, parecia parar sem fazer nenhum progresso. Parecia que ela tinha chegado até onde podia e não poderia, portanto, ir mais longe.
Então, o homem decidiu ajudar aquela borboleta. Ele pegou uma tesoura e retirou o que restava do casulo. A borboleta assim apareceu facilmente, mas ela tinha o corpo inchado e pequenas asas enrugadas.
Ele continuou a olhar a borboleta, pois ele esperava que, a qualquer momento, as asas crescessem e expandissem para suportar o corpo, que iria contrair-se com o tempo. Nenhuma das duas coisas aconteceram. Aliás, a borboleta passou o resto da sua vida engatinhando com o corpo inchado e as asas enrugadas. Ela nunca conseguiu voar. O que o homem tinha feito, com a melhor das intenções e que ele não pode compreender, foi que o casulo restrito, a luta e o sufoco requerido para sair pela pequena abertura do casulo eram as formas que a natureza tinha feito para forçar o fluido do corpo da borboleta a passar para as asas. Sendo assim, ela estaria pronta para voar assim que ela tivesse se libertado do casulo.
Às vezes as lutas são necessárias na nossa vida. Se Deus nos permitisse passar pela vida sem nenhum obstáculo, nós seríamos 'deficientes'. Não seríamos fortes o suficiente e nunca poderíamos 'voar'.

Por tudo isso, lembre-se:
Tenha um ótimo dia, uma ótima vida e algumas lutas.
Depois 'voe'!
É necessário.
É assim que as coisas precisam ser para que a elas sempre seja dado o exato valor!

Bom Domingo
Um abraço com carinho